Um retrato das condições precárias do transporte público oferecido aos passageiros do entorno sul do Distrito Federal
Reportagem especial
Por: Dayhane Chaves, Maria Eduarda Neves e Rosi de Oliveira
O que geralmente você está fazendo entre três e quatro da manhã? Descansando? Muito cedo para acordar? Pois esse é o horário que muitos passageiros que utilizam o transporte público dos municípios goianos se colocam de pé para conseguir chegar em seus compromissos a tempo.
Os moradores das cidades próximas ao DF (Valparaíso, Cidade Ocidental, Jardim Ingá e Luziânia) enfrentam diversos problemas para conseguir cumprir sua rotina de estudo, trabalho e outros compromissos na capital do país. Entre os principais problemas estão: ônibus superlotados, parte dos veículos em más condições de uso, longas esperas e tarifas altas em relação a aquelas praticadas no DF.
Mas essas dificuldades não são novas. Já estão presentes na vida dos usuários do transporte público goiano há muito tempo, como relata a auxiliar de serviços gerais, Ládia Lima, moradora de Luziânia. Às 6h20 da manhã ela já está na parada de ônibus aguardando o transporte para chegar ao serviço.
Entre os problemas relatados pela auxiliar estão: a longa espera entre as saídas (em torno de 30 minutos) e o fato de apenas uma empresa de ônibus (CT Expresso) atender a região de Luziânia (a outra empresa de ônibus da região, a Catedral, atua apenas no bairro do Jardim Ingá). “O povo reclamava da anterior, né? [da Anapolina]. Mas, ela dava de dez a zero nessa. Toda hora tinha ônibus. Quebrava mas pelo menos tinha e essa aqui é péssima.”
A empresa a qual Ládia se refere é Viação Anapolina (Vian) que exerceu um monopólio operando por mais de 50 anos nos municípios de Valparaíso de Goiás, Cidade Ocidental, Luziânia e Novo Gama. Ela deixou de operar na região em 2014, após um acúmulo de problemas relatados pelos funcionários como atraso no pagamento de salários e benefícios, além da redução da disponibilização dos veículos para os usuários por falta de manutenção e até mesmo de combustível.
Imagem: ônibus incendiado durante protesto contra a falta de transporte no entorno/ portal G1/TV Globo
Na época, essa sucessão de fatos gerou intensos protestos de ambos os lados: rodoviários insatisfeitos com as condições de trabalho e usuários contrariados por não conseguirem chegar em seus destinos. Parte dos moradores realizaram bloqueios das vias que dão acesso a BR 040, ônibus foram queimados e todo esse cenário acabou resultando em um posicionamento da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que decidiu realizar um chamamento público para que novas empresas pudessem normalizar o serviço de transporte da região. De 2014 até hoje, pouca coisa mudou.
Propostas de integração: um longo caminho
De acordo com a Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios 2019/2020 (PMAD), coordenada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), nos municípios goianos do entorno do Distrito Federal, o transporte público rodoviário representa 47,9% entre os principais meios de mobilidade utilizados para deslocamento para o trabalho, e o transporte individual motorizado representa 27,01%.
Quando se analisam os deslocamentos desses municípios para o trabalho no Distrito Federal, em específico, esse número sobe para 60,37%. A pesquisa ainda revela que em 25,57% das viagens, o tempo dos deslocamentos é acima de uma hora. Isso põe em evidência a necessidade de um transporte eficiente e cada vez mais integrado entre as duas regiões.
No entanto, as propostas de integração entre os sistemas de mobilidades dessas regiões são de longa data e sem andamentos concretos. Por exemplo, no Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU/DF), instituído em 2011, pela Lei 4.566/2011, tinha como uma das diretrizes: “Implantação do sistema integrado de transporte público de passageiros do Distrito Federal e Entorno”, com a responsabilidade do Governo do Distrito Federal para articular com os outros entes da federação.
Em 2020, a ANTT realizou, por meio de Convênio, a delegação das competências de gestão, regulação e fiscalização do Serviço Interestadual Semiurbano dessa região para o Distrito Federal. O DF por sua vez, solicitou a revogação do acordo em dezembro de 2022, devolvendo a gestão e fiscalização dos serviços de transporte do entorno para a ANTT.
Um novo passo que pode sinalizar um avanço rumo à integração foi a proposta, apresentada, ao governo federal, em fevereiro de 2023, por Goiás e pelo Distrito Federal: um consórcio para gestão do transporte público do entorno. Na proposta, as responsabilidades seriam compartilhadas entre os dois entes da federação e a União, também quanto aos subsídios referentes ao custo da passagem, o que representaria um benefício para a população.
Terceira Casa
Os municípios do entorno estão situados a uma distância considerável do centro de Brasília, local onde geralmente se encontram maiores e melhores oportunidades de emprego e renda. Valparaíso de Goiás, o mais próximo e que faz divisa com o Distrito Federal, encontra-se a pouco mais de 35 quilômetros. Já Luziânia está a mais de 50 quilômetros da Capital Federal.
A distância impõe sacrifícios que são sentidos por diferentes gerações. Larissa Pereira, 21 anos, é estudante e moradora de Valparaíso de Goiás. Sai de casa às 4h40 da manhã a caminho de Ceilândia, onde faz faculdade. E esse trajeto não é feito integralmente em um único veículo. Ela precisa trocar de ônibus no meio do caminho descendo na Santa Maria, região administrativa vizinha dos municípios do entorno, e só então ela consegue dar continuidade ao trajeto.
Glaucia Caixeta, 57 anos, é enfermeira e trabalha em regime de plantão no período da noite. Mesmo utilizando o transporte em um período que tem um fluxo menor de passageiros, ela também sai mais cedo de casa para conseguir um assento vazio. “Inverti a escala para vir sentada, pego o ônibus 4 e meia para entrar às sete horas da noite, tenho medo de aguardar o outro e não ter como vir sentada”. Ela relata ainda que aos finais de semana e feriados a situação é ainda mais crítica.
Para ambas, a implantação de mais linhas de ônibus e o aumento na quantidade de veículos aliviariam os desconfortos causados pelas longas horas gastas nos coletivos diariamente. Glaucia Caixeta reclama: “Eu sinto falta de mais ônibus. A gente paga um transporte que não é barato e vem igual sardinha em lata”. Essa é outra questão que prejudica os trabalhadores: o alto preço das tarifas.
Tarifas altas, conforto baixo
Os preços das passagens praticados no entorno não são unificados como acontece no Distrito Federal. Cada município tem uma tarifa diferente e o usuário custeia todo o preço do serviço. Realidade diferente daquela que ocorre no Distrito Federal, onde vigora a tarifa técnica, ou seja, uma parte é paga pelo usuário, por meio da passagem, e o restante é pago pelo governo (conforme publicado no Diário Oficial do GDF, em 28/02/2023).
Sem essa co-participação do DF o valor da passagem seria de R$10,89 para o usuário final. E mesmo nesse cenário o valor estaria mais acessível que algumas tarifas que são praticadas no entorno, como é mostrado na tabela abaixo: *Valor das tarifas (2023): Valparaíso R$6,10/ Cidade Ocidental (comum) R$6,75/ Cidade Ocidental (Executivo) R$13,50/ Luziânia R$8,35.
Outros pontos relacionados a esse problema são: a falta de integração, que não existe nem entre as empresas do entorno, tampouco com os coletivos que circulam no DF e a ausência de passe estudantil, questão difícil de ser solucionada de acordo com o economista e mestre em Finanças, Cesar Bergo. Ele cita a dificuldade de endereçar um responsável, pois o uso do passe seria direcionado ao DF: “Você tem que transportar esse estudante de uma cidade que não é o DF para estudar em um colégio que é bancado pela Secretaria de Educação do DF.
Ele continua explicando sobre essa dificuldade: “Então existem problemas para implantar esse passe estudantil, uma vez que a demanda é muito grande, então há que se fazer estudos, porque quem é que vai bancar esse deslocamento? Se vai ser o governo do estado de Goiás se vai ser o governo Distrito Federal, então enquanto se discute, infelizmente o maior prejudicado é o próprio estudante”.
O especialista também comentou sobre a possibilidade de haver uma gratuidade tarifária. Ele destacou o quanto as altas tarifas prejudicam os trabalhadores que precisam reduzir outros gastos como alimentação ou moradia para bancar o transporte. Mesmo assim, o economista acha pouco provável um consenso entre os dois governos. “É muito difícil, sobretudo pela quantidade de pessoas, pela distância entre as cidades e você não consegue viabilizar o meio de transporte com essa proposta da tarifa zero.”
Bergo ressalta ainda os benefícios de um transporte mais eficiente do ponto de vista econômico. Ele afirma que além de ser mais barato sob a ótica dos gastos com manutenção e combustível, ele também proporciona um deslocamento mais rápido e mais confortável. “Essas pessoas andam em carros com superlotação, precários, com problemas de manutenção, inclusive mecânica, com muito risco até mesmo de acidente, e quando quebra você tem um dia de trabalho perdido. Então não tenha dúvida que um transporte público eficiente é muito importante.”
Como um transporte ineficiente impacta na saúde dos trabalhadores?
Jornadas que iniciam antes do raiar do dia, longas viagens feitas muitas vezes em pé, em coletivos lotados e por vezes, em más condições. Esse cenário faz com que os trabalhadores já cheguem aos seus postos de serviços cansados. É o que afirma a especialista em medicina do trabalho, doutora Fernanda Netto. A médica elenca vários pontos prejudiciais à saúde do trabalhador em um sistema de transporte público com baixa qualidade.
Entre eles a especialista destaca o estresse físico e mental tanto dos passageiros quanto dos profissionais que atuam na área, além de dores no corpo e desequilíbrios causados inclusive na alimentação, resultado da falta de tempo para preparar uma refeição mais adequada por quem acaba precisando passar longas horas nos coletivos. Ouça mais detalhes sobre o assunto na entrevista a seguir.
Desequilíbrios que afetam os profissionais rodoviários
Não são só os passageiros que sofrem com a precariedade do transporte público do entorno. Os rodoviários também são prejudicados com parte da frota composta por veículos antigos, más condições de trabalho e um salário muito defasado. Mesmo estando tão perto da Capital, é significativa a diferença de salários e benefícios pagos aos trabalhadores dos municípios goianos em relação ao DF.
No entorno, um cobrador de ônibus ganha em média um salário mínimo e o motorista recebe R$2.400,00 por uma jornada que pode chegar a oito horas. O valor ainda é composto do pagamento de um vale alimentação de R$525,00 e um plano odontológico que tem uma parcela custeada pelos funcionários. Remuneração e benefícios muito abaixo daqueles que são pagos para a categoria no DF.
De acordo com João Jesus de Oliveira, presidente do Sindicato dos Rodoviários, em entrevista recente ao Jornal de Brasília, um motorista recebe em torno de R$3.300,00. A jornada fixa é de seis horas e a partir disso, são pagos os extras acrescidos de vale alimentação, plano de saúde, seguro de vida além de descontos em clubes e eventos.
O que dizem os órgãos públicos responsáveis?
Em nota, a ANTT, afirmou que fiscaliza o transporte interestadual de passageiros, atuando junto às empresas que efetuam o transporte semiurbano que atendem os usuários do transporte que fazem o trajeto Goiás e Distrito Federal. Entretanto, não dispunha de fontes que pudessem esclarecer as informações solicitadas. Procuradas, as prefeituras dos municípios citados na reportagem não retornaram os pedidos de esclarecimento.